20 de abr. de 2009

O navio mendigo( Malba Tahan)


"No ano 295 de Maomé tomei passagem num grande navio de mercadores persas que seguia em busca de especiarias para o país de Sirandib, e foi com indizível alegria que fizemos vela em direitura aos mares que ficam para além do mar de Omã.Quis a vontade de Allah (seja o Seu nome exaltado!) que encontrássemos sempre ventos favoráveis, temperatura branda e mar bonançoso.Vinte dias porém já eram transcorridos quando uma tarde, depois da terceira prece, o "Jannab" - assim se chamava o nosso navio - parou junto a uma pequena ilha deserta e montanhosa que eu soube mais tarde chamar-se Hidifiã.Ao notar que havia a bordo, entre os marinheiros, um movimento anormal perguntei ao capitão Mubarak - homem experimentado no mar - se algum perigo nos ameaçava e qual seria a causa daquela parada intempestiva em tão inóspita região. - Bem se vê, ó muçulmano! - respondeu-me o comandante - que é esta a primeira viagem que fazes no mar, visto como ignoras que aqui paramos unicamente para dar a nossa esmola ao navio-mendigo!Por Allah! Fartas vezes ouvira dizer, em Bagdá, nas palestras com velhos marinheiros, que o mar é uma fonte inexaurível de preciosos ensinamentos e grandes imprevistos. Falaram-me de peixes gigantescos com faces humanas que voam sobre as ondas; de pássaros negros cheios de penas brilhantes que escondem os ninhos sob pedras, no fundo das águas; disseram-me também, que havia nos sete mares da China, cavalos monstruosos e serpentes terríveis que assaltam as embarcações e devoram os homens. Mil coisas ouvi, incríveis e espantosas, que povoam as narrativas da maruja; nada porém me disseram acerca de navios-mendigos! Não seria, talvez, a existência desses mendicantes marítimos uma dessas muitas lendas que vivem na imaginação impressionável da gente do mar?Estava eu assim absorto em tais pensamentos quando o "Jannab", depois de virar por davante, se aproximou da ilha. Vi então aparecer num pequeno canal, entre arrecifes, um navio tão velho, tão sujo, tão estragado que parecia realmente um mendigo do mar! A vela, que o vento enfunava levemente, estava suja e remendada; o mastro, apodrecido, pendia torto para um lado e mal-seguro por dois brandais negros cheios de nós. Do castelo-de-proa - já em ruínas - até a popa viam-se, nas dobras mortas, pregadas grosseiramente, por fora, pedaços de madeira e rodelas de couro, que cobriam completamente o casco da velha galera, Na extremidade do mastro, a fingir de bandeira, um molambo, escuro e disforme, agitava-se grotescamente ao vento.Encheu-me de dó o deplorável estado da mísera embarcação! Muito deviam sofrer os infelizes que nela viviam, afrontando, numa luta desigual, as intempéries e a fúria impiedosa das ondas de Omã.Ali está - disse-me o capitão apontando para o calhambeque - o navio-mendigo! Uma vez por ano, durante o inverno, ele sai deste refúgio e faz uma peregrinação pelos mares circunvizinhos, implorando uma esmola aos ricos veleiros que encontra!E, como os meus olhos não quisessem desfitar a miseranda galera, tanto a sua aparição me enchera o espírito de divagações e hipóteses, o capitão Mubarak bateu-me no ombro e disse-me pachorrento:- Aquela bandeira esfarrapada que agoniza no topo do mastro significa: - "Uma esmola pelo amor de Allah!"- Só há força ou poder em Allah, o Altíssimo! - balbuciei cheio de assombro- Quem poderia imaginar houvesse no mundo um navio em tão penosas circunstâncias?Nesse momento, por ordem do comandante Mubarak foi atirada ao mar uma grande caixa de madeira, que ficou a flutuar saltitando entre as ondas. Aquela caixa - conforme soube mais tarde - continha várias peças de roupas, víveres, armas e dinheiro, Era a esmola que a piedosa tripulação do "Jannab" enviava ao navio-mendigo!Algumas horas depois a nossa galera, aproveitando os ventos fortes que sopravam do sul, afastava-se da ilha de Hidijfiã. O navio-mendigo, segundo o dizer dos marinheiros, só poderia apanhar a valiosa caixa quando estivéssemos ao largo, bem longe.Sem poder, porém, dominar minha curiosidade, perguntei ao capitão quais eram os tripulantes do apodrecido barco que pedia esmolas entre as ilhas desertas de Omã!- São seres invisíveis e poderosos! - explicou-me o comandante. - Vivem no velho navio-mendigo sete djins benfazejos; esses gênios (que Allah os proteja!), pedem aos navegantes que cruzam estes mares um óbolo, um auxilio qualquer. O navio que não os socorre sofre tormentas e danos terríveis; aquele, porém, que dá a esmola pedida, encontra em sua rota um mar sempre calmo e ventos favoráveis!Aquela mitológica explicação do capitão Mubarak - confesso - não me satisfez a curiosidade. Algum mistério havia, com certeza, em torno do navio-mendigo, que o meu informante não soube decifrar.Viajava, porém, a bordo do "Jannab", um velho chamado Hussein El-Sahid, polígrafo famoso de Bagdá, que ia à índia ensinar um príncipe muçulmano a ler e interpretar os versículos mais difíceis do Alcorão. Interroguei-o sobre o caso, que feri com duas ou três incontidas chacotas. O erudito Hassein disse-me então em tom confidencial:- Deixa em paz, ó insensato, o navio-mendigo. Não procures destruir ou ridicularizar a encantadora lenda dos marujos persas, pois, embora no navio-mendigo não haja homens nem gênios misteriosos, as generosas dádivas, atiradas ao mar, vão servir exatamente àqueles que mais precisam!E, antes que eu perguntasse, por ironia, se era aos peixes-voadores ou aos cavalos-marinhos que as roupas, víveres e armas iam servir o prudente sábio prosseguiu:- Todas as caixas que se atiram à ilha de Hidijfiã são levadas por uma corrente marítima para a costa da Pérsia, perto de Chamir, e vão ter à praia. E os pobres pescadores que vivem nessa velha aldeia é que recebem todas as esmolas que os navegantes supersticiosos dão ao navio-mendigo.E concluiu, sorridente e bom:- A Lenda, meu amigo, com seus encantos e maravilhas é às vezes mais útil aos infelizes do que a Verdade com o seu rigor e a sua nudez!"

Fica a reflexão, para onde houver paciêcia e entendimento.
Até a próxima!