- Vamos; é hora de descer as escadas desse degradê de emoções e sensações. A subida tinha a minha mão. A descida não tem corrimão. A cada degrau uma emoção que deixamos para trás, a cada janela uma memoria perdida. "A fonte do esquecimento está à esquerda da porta do inferno". Bebeis, diariamente, goles homeopáticos. Já anoitece. Pouca coisa mudou. Do dia nublado herdamos a escuridão profunda e crescente do tempo e seu beijo lento, forçado e inevitável. Não há lua nem romances, nem luzes ou nuances. Há aquele medo quase digestivo de quem sente muito e fala pouco. Avançam as horas. Os ponteiros já não podem mais sincronizar as batidas do coração, agora cansado e faminto. Melhor tirar a mesa, melhor lavar essa louça suja e deitar, pra sonhar que ainda estamos acima das nuvens. Viver só seria mais justo se fossemos filmes, cada um de nós, películas giratórias de quadros infinitos e fatos congelados, retornáveis, pausáveis e repetitíveis. Cada rua um roteiro, cada memória um cenário - sem diretor! Porque aqueles como nós já estão exaustos da ordem. Mas o Sol pomposo ilumina a ordem da realidade e cega os sonhos e pesadelos, afasta os demônos e queima os vampiro. Encerramos as mágoas a cada pôr-do-sol, cada lençol, cada ambiguidade escondida nos milhares de recomeços que diariamente ignoramos. Ambígua é a vontade de quem deseja e não alcança, de quem corre e não descança, descalçado de esperança. Minha história, chata e enfadonha que faz torcer narizes, é contada nos vitrais e janelas desse templo, dessa escada, que continuamos descendo sem trocar olhares. Apenas esticando verdades em palavras. No final, lá embaixo está o barco. Num porto. Caronte, moeda e incerteza. Não há nada de seguro nesse porto: o destino é afinal outra paisagem da mesma história. Tece-se, assim, vossa memória. - R.