Anímica.
Eu prefiro não estabelecer esse limite, não dar esse endereço, de onde mora o problema em mim, e onde mora o problema no outro. Esse risco besta de limitar territórios, rabiscar nosso tabuleiro, dar sentido às moradas do bem e do mal. Não. Burrice. Burrice como turismo em cemitério. Relíquia, sabe? Coisa velha. Bagagem você sempre vai ter pelo viver, pelo bem viver. A embalagem você decide se guarda ou não. Relíquias existem para serem admiradas. Mas criar pequenos museus de admiração em torno da vida é bloquear o coração para o novo. Então não vou colar esse rótulo, não vou plantar tubérculos venenosos nesse jardim. Não quero bulas pra me drogar, nem dosadores de nada. O erro e o acerto possuem a mesma possibilidade de salvar, ou de matar. Passar todas essas voltas de ponteiros procurando culpados, julgando, condenando, defendendo, ofendendo... fazer da vida um tribunal! O que torna alguém mais especial vem de dentro, do fundo, do etéreo. Não é definível, não é tangível, é um trato abstrato, um acordo em coro, corado, dourado e sagrado, como uma sinfonia de meninos cantando canções de natal numa capela. É o mesmo clichê, pra todo mundo. Um clichê lindo!
Marte, o vingador.
Aí eu vou me enchendo de cafeína pra drenar essa letargia. Fico pensando mesmo se sou humano, se emano, demais ou de menos. Me sinto de mármore. Essa carência de quem precisa ser esculpido, estúpido; se preciso mesmo de mãos úmidas que me dão forma até a perfeição. Perfeição acadêmica, fria, exposta. Camille Claudel, dando formas a si mesma para impressionar Rodin. Rodin amava demais. Camille se amava de menos. Já eu, sempre perseguindo coisas que desaparecem no tempo. Sou, sou caçador de vento: amo, amo, amo e não tenho carne pra aguentar tanto furo. Depois choro. E arrumo de manhã um motivo artificial pra me arrumar, saio no asfalto fingindo que não está calor, derreto no estacionamento antes do meio dia. Depois de tanto papel com teclado faço qualquer coisa antes de dormir. Aí apago, porque não há tv paga que pague. Eventualmente, pousa uma borboleta. Sim, que seria de mim sem as borboletas? Esse aspartame todo ainda pode atrair alguns insetos. Até vir o punho poderoso de Marte, esmagar o dia com sua estrela vermelha. A pele coça, e isso é só o décimo avo de toda a coça, Um bombom, um bem supremo. Um amanhecer pra começar e novo. Nada mais.
34 graus à sobra.
Começa o dia mijando pra se esvaziar da noite. Dormiu mal, se revirou debaixo do travesseiro. Estar embaixo do travesseiro é o meio do fundo do poço. Morfeu vem tímido. O dia começa meio sem sentido, meio frio, com um pão quente. Os barulhos vão pouco a pouco preenchendo a brisa suave do nada. Cria-se aí um mundo de distrações. Algumas pequenas emoções como pescar num lago de trutas, comer uma fruta antes do meio dia. E tudo vai se enchendo de novo. Tudo volta a ser semente. Se olha no espelho depois de lavar o rosto do dia quente, se sente demente. Aflora, segura uma lágrima. Volta pra mesa do escritório com seu ar vazio de sempre, pra preencher planilhas e pendências. Os ponteiros vão se arrastando, derretendo o frio da manhã. O dia de verão perde o significado no meu castelo gelado de cimento. Alguém corta o vento fúnebre com uma piada; os homens deviam ser proibidos de contar piadas na segunda feira... mas ainda assim, ri. Meio que por obrigação, ou traição a si. No almoço não sentiu temperos. O refeitório era o auge de todos os sons que brotaram da manhã. Agora era uma árvore, uma selva de grunidos de quem não se cansa de reclamar do próprio dia. Exceto aquele ser ali, parado, em silêncio, interagindo com sorriso tímido enquanto o arroz descia pela goela seca, meio que saciando impulsos, meio que engolindo gorjetadas e ânsias. Descia agora para repetir tudo de novo à tarde, e à noite chorar na solidão de um filme, ou achar sua vida sem graça analisando um personagem de Woody Allen. Nada mudava. Nada conseguia alimentar sua vontade de gritar do alto de um prédio, a todos os ausentes, que aquele quebra-cabeças era óbvio demais. Era tudo se repetindo. Tudo ladeira abaixo. Tudo sendo mijado, pouco a pouco, para de novo ser bebido. Nem os comprimidos fazem a noite melhor. Deitou-se entre a angústia, que se revirava demais e a tristeza, que só roncava. Escondeu a cara no travesseiro. Todas as noites um menage a trois, sempre interrompido pelas batidas que a saudade dava na porta. Nunca atendia. De manhã, tudo saia na urina. Outro dia quente. Outro dia frio.
R.