Tinha jurado jamais publicar isso. Mas alguns juramentos são feitos para se quebrar...
Dezembro de 2010
E esse verão esquentando os edredons. É nos edredons que me escondo do mundo. Enquanto todos se banham nas praias, fico aqui, fingindo ver a vida passar, mentindo as horas pr'os ponteiros acelerarem. Esse ano nunca acaba. É como meu estoque de lágrimas. Mas nessa manhã especificamente, onde às 8 da manhã faz 30 graus sob o sol cegante que insiste em invadir espaços de minha cortina, e nem posso dizer que acordei pois ainda não dormi, me sinto seco. Culpa - duvido - do vinho que tomei sozinho, 3 garrafas de merlot. 3 garrafas de meu sangue engarrafado, que insisto em jorrar nas circunstâncias pra criar o mártir da solidão. Talvez nem seja bem, eu, um homem que chorou até secar suas lágrimas. Esse foi Bukovski, e, vai entender o que ele sentiu de verdade. Talvez nem seja eu simplesmente a representação viva de um lamento. A realidade é que mundo nunca gostou muito de mártires, menos ainda de mártires de si mesmos. Os poetas que definharam na história são apenas idiotas dos amantes inconscientes que ainda deslizam no poço escorregadio dos amores efêmeros. Eu não. Eu cheguei no fundo. E com o lodo na cintura descobri que não posso mais chorar. Acabaram os comprimidos, ficaram as culpas. A biologia privou meu direito de chorar. Esse darwinismo escroto que insiste que é preciso evoluir, se adaptar. A cena, almodovoriana que só ela, embora com menos de 15 segundos, não foi bela: fiz uma careta que deve ter sido muito feia, eternamente registrada no globo ocular da vista do quarto sem espelhos. Mas não caiu uma lágrima. Há uma semana não engolia qualquer coisa. Foi, sim, um vício obscuro dos seus beijos, um feitiço daqueles em que você resseca, cem anos, num castelo há cem anos-luz de distância da realidade, esperando um beijo que nunca mais virá. Era o fim. Talvez fosse. Pra ajudar, todos os vinhos, os melhores, em promoção, nesse fim de ano em que todos parecem ter algo a celebrar. Há duas noites enchi minha cara de cerveja e vodka, falei coisas engraçadas com pessoas interessantes, mandei meia dúzia de salafrários à puta que os pariu, me fiz herói de passageiros invisíveis em risíveis aplausos quase criminosos; mas passou. Ninguém lembrará semana que vem. Talvez seja assunto em alguns meses ou anos, numa mesa de bar, falando daquele porre engraçado em que você não soube como chegou em casa e diga não lembrar pro assunto parecer mais engraçado que patético. Mas eu sabia. Eu tenho memória de mármore, gelado, frio, minucioso, calculista, vulcânico, resfriado; eternizada como uma estátua grega, perfeita, Vênus de Milo, sem braços. E aqui, afogado em todos os lençóis de nós dois, eu pisei no fundo do poço. É. Só quem já esteve lá, mesmo que por um dia, é capaz de definir essa masmorra; mas o problema é que estou gostando, estou me apaixonando por esse lugar. Pus uma foto nossa na parede deste porão, agora bucólico, e perfumei essa lama com lírios. Eu sempre gostei de lírios. Amarelos. Até plantei alguns numa parede isolada, cheia de cactos. Acendi uma vela para qualquer coisa que estivesse velando meu invisível. Qualquer companhia se torna agradável quando o silêncio marreta suas certezas. Pura imaturidade.
Mas é engraçado: algumas pessoas também escorregaram aqui pra me fazer companhia. Riem, choram, tomam mais vinho. Como se vinho matasse essa sede por quem já se foi. Esse vinho amargo, forte e seco não tem nada de celebração. E nessa risadaria triste vou me fragmentando, cada pedacinho do meu reino vai caindo. As coisas importantes vão afundando na areia movediça do embate com a realidade. Não tem mais ar puro aqui, só cigarros, evaporados. E respirando essa fumaça você encontra comprimidos, de alguma substância química que serve apenas para acelerar as horas. Escrevo frases quebradas, que talvez não signifiquem nada amanhã. Ou em cacos, me devolvam uma perspectiva fúnebre do que me aguarda em outras estações. Perder a mim mesmo dentro de você é como ser sugado para outra vida. Perder a liberdade de ser um, de me escolher em meio a tanto vaso quebrado. Essas veias escancaradas saltando de mim, olhos avermelhados e rugas que antes não haviam. O cabelo esbranquiçado revela o terror no espelho. Entope minha razão de todo horror de mim, de pensar que isso começou com amor. Tristão sabia; E só na morte encontrou sua Isolda, em meio a desespero, flores, facas, venenos e desencontros. Desprezo os espelhos. Se a realidade era tão óbvia, do que o otimismo poderia me salvar? Nesse buraco aqui, olhando pro alto, onde espero que alguém encha logo de terra. Mas não: a noite, vago como um morto vivo em busca de qualquer coisa que não seja preto e branco. Minha companhia se torna insuportável para aqueles que abandonaram meu buraco, agora minha casa. Essa tolice carente de quem decidiu nunca mais ser enganado. Fico atrás dessa coisa que não existe, apedrejando a realidade e recebendo minhas próprias pedras de volta nesse espelho metafísico. Esse verão eu fiz inverno - ou inferno, diriam os anjos. Não verei andorinhas, nem o mar. Nosso mundo, concomitante, me faz fugir pra esse buraco escuro ignorando o infinito. A noite tento apaziguar a dor olhando estrelas, pensando em outros mundos, desenhando mitos como sempre fiz; indagando esses mundo, até outrora, imaginários, se são reais, se são melhores que esse... E talvez sejam, mas não sejam para mim.
"Almeje sempre a perfeição."
Grita essa voz esquisita; eu me vejo como um monge, cego, casto e bêbado, de uma religião estranha onde o fim do mundo se aproxima. Minha fé procura esconderijos nesse apocalipse. Meu bunker é aqui, debaixo desse edredom, enquanto você bombardeia flores que, de certo, murcharão. E você nem sabe disso agora. Eu sei. Sempre sei de tudo antes de quase todos. Mas ignoro. Ou ao menos, ignorava. Quanto mais o mundo passar, mais protegido estarei dese furacão de coisas, estilhaçando verdades até ontem absolutas, destruindo minha agenda com tantas farpas e pregos de fuga rasgando as páginas de papel. Pode rasgar; esse ano vai inevitavelmente passar e as agendas vão pro lixo. Esse sono drogado entorpecendo a bipolaridade destrutiva. Algo errado nesses remédios. Só fica a parte negativa. Sabe lá o que será de mim agora, sabe lá que coisa vou me tornar. Sabe lá quanta gente vou ferir pra me vingar de mim mesmo nessa dor imperdoável. Assim nascem os vilões? Assim nascem os antecristos que destroem o amor na incoerência de seus buracos obscuros tramando contra quem acredita? Não quero me tornar isso. Mas estou preso até a cintura. As escolhas morrem quando as correntes são mais pesadas que a bagagem.
Assim nascem os amantes cegos e errantes, aqueles que menosprezam maioridades por não serem capazes de enxergar a grandeza do mundo ensolarado. Do choro restaram os soluços; dos soluços fica o silêncio sepulcral de meu cômodo enevoado e fechado; os ecos de um dia inteiro, registrados como riscos na parede carcerária; é como um cabaré fechado, e eu na agonia de uma puta triste que viu seu amor se perder em seus próprios atos, ou em sua crença de que uma cama quente 2 vezes por semana salvaria uma eternidade inteira do desfiladeiro. Uma bruxa inocente condenada à fogueira. Nessa inquisição amorosa eu quem fui julgado, condenado e esquecido. Um nome no rodapé da história, apagado pelo suor da minha própria tentativa.
Não quero ser isso. Só quero que essa cápsula se quebre, que esse livro se feche e que eu possa voltar a mim. Voltar 10 anos no tempo. Refazer minhas escolhas. Jamais poderei. Sei que jamais serei o mesmo. Jamais serei verão.