29 de set. de 2013

60 segundos submersos em mim.


Um pedido particular, vindo diretamente entre acordos com diretores e gerentes, chega às minhas mãos. Um exame comum, de radiografia dos pulmões. Quase uma cortesia, uma gentileza por assim dizer. De perto, um senhor distinto, de terno e gravata, com olhos gentis e pequenos, ostentando uma fisionomia cansada, pastas cheias de papéis, carteira cheia de cartões e notas altas que num movimento brusco ele fez, de certo modo, questão de ostentar às vistas curiosas do entorno; analisando com mais proximidade, vi movimentos trêmulos como de quem vivesse a angústia constante de ter que estar em algum lugar, fazendo algo. Algo bem conhecido por mim, ultimamente. Se disse viúvo, mas ainda usava seu anel de casamento dourado, vivo, contrastando sua pele desgastada e pálida. Em meio a todas essas conversas pessoais das quais já tinha há tanto me afastado por não lidar mais com o público, surpreende um sussurro daquela pobre criatura, direcionado a mim e ouvido apenas por mim: "Estou com suspeita de câncer...". A frase fazia vazar por entre todas as expressões que os anos estamparam em sua face toda doçura e inundavam preocupação; os mesmos olhos de 3 minutos atrás. Fiquei sem fala. Fiquei sem ação. Me virei um instante enquanto ele continuava: "Tenho me sentido tão só, com vontade de chorar, estou sempre tremendo, e sempre muito, mas muito triste. Fumei demais. Agora estou mais doente, mais triste e mais nervoso." Falou com mais firmeza, talvez tentando demonstrar uma força que não mais existia; mas a voz tremulava falsetes nas palavras finais de cada oração, para denunciar a fragilidade perturbadora que aquele pobre homem carregava por dentro. Leonino, vaidoso, de sapatos engraxados e terno bem alinhado, que poder esse homem pensou ter antes de testemunhar sua própria vulnerabilidade? Me subiu a frase "Não sou médico, senhor." Mas desceu-me o verbo, como desce garganta abaixo de quem engole um remédio ruim. Eu mesmo, tantas vezes senhor do absoluto, das verdades incontestáveis da vida; dos absurdos dos quais me vitimei. Eu, você, ele, eles e elas. Isso.
Fico na dúvida se o tempo realmente nos endurece; no fundo, acho que amolece - carne, pele, osso e alma - nos faz temer, nos faz chorar; arrogantemente nos recusamos a sentir. Nos sentimos agredidos pela vida quando somos assaltados por um problema, ou uma mudança de planos. Nos recusamos a enxergar que a vida nos amolece, aos poucos, desde a virilidade adolescente infalível e imortal em toda sua crença até a resignação inevitável das rugas e cabelos que embranquecem e se vão; o tempo não cura, o tempo nos adoece. E mais importante que nunca é sabermos que a vida nos fala, nos comunica todo o tempo. Nos pede amor, nos pede vida, nos pede bondade. Nos pede coisas que recusamos por capricho; por sentir a derradeiro sentimento de superioridade na mais efêmera vontade de mais. Vontade material, desejo que consome. Somos todos aquele senhor. Pensei nisso, em tudo isso, por 30 segundos, enquanto um quadro se formava em minha mente, um muito familiar dentre todos nós, talvez a Monalisa de todas as entrelinhas do mundo, a fatal coincidência que corrói a todos, lentamente, oxidando fatos do ventre ao túmulo: a certeza. Não quis olhar - nem por curiosidade mórbida, seu laudo. Mas de certo modo, tive um laudo preventivo em mente 100% aplicável a mim, a você, e todo o resto.




R.