18 de nov. de 2016

Purgamor


Madrugada.
E ainda pareço vagar num mundo que não é meu.
As primeiras horas são sempre as piores. Dividido entre o cansaço, a angústia pelo sono ausente, a invasão indecente dos pensamentos afiados, que navalham impiedosamente músculos, Espírito, e pálpebras, mantendo-as escancaradas, expondo a íris inquieta e dilatada na escuridão. Logo as formas preenchem as paredes escuras com imagens. E as vozes do dia ganham forma: demônios alados, borboletas falantes, amantes perdidos. Dentre todos.os rostos nessa multidão-devaneio-insone, estava o seu. Sinto tanta falta dele. Tanta falta de ver você me olhando no escuro enquanto tentávamos dormir. De sua respiração, que de tão fincado em ti, tentava sincronia com a minha. Daquele patético espetacular de ouvir seu coração no meu. Agora não. Agora você é intangível, e sua voz é  a mesma voz desses demônios que insistem em perverter meu sono. Preciso ser honesto: não me lembro bem do seu rosto. De sua voz. De seu cheiro. Só me lembro de que te faltava. Me lembro, plenamente, de nossas horas. As horas, as horas mortas, ninguém toma de nós. Talvez por isso o passado pese tanto para alguém, que como eu, se deu conta lá pelos sete anos de idade que a tristeza e a falta de endorfina criam pânico e carências incuráveis ao longo da vida. Essa definição deve ter mil páginas freudianas, mais umas quinhentas de Jung. Eu só tenho uma parede, que perde o branco no escuro, e se torna o lar de monstros sorridentes que mastigam meu coração. Pronto. Colocar em palavras, ameniza a realidade. Cria perspectiva. Porra nenhuma! Cria distração. Não queria transformar minha dor em entretenimento alheio, mas os monstros aplaudem. Você aplaude. Toda vez que me desespero, ouço aplausos. Achei que podia ir em frente sem nada disso: cigarro, vodka e calmante. Mas estou nu, deitado no meu caos-lençol enquanto sonho que você me olha. Que pelo menos aplauda. Mas sua sombra é muda e aleijada. Mímica do medo. Crua, feia, maldita. Como tudo que restou de nós. Ah, como eu queria ser feito de pedra ao invés de carne. Invejo os que dormem rápido. Invejo os corações limpos. Invejo quem tem essa alegria orgânica de viver e correr pelas ruas de fone, sacudindo dos músculos as navalhas e suando dores. Tenho inveja de muitas coisas simples e pequenas que não me são permitidas. Porque essa consciência - por hora maldita - me tira o sentido e me preenche de sentimentalidades, paixões, feridas molhadas e enxaquecas. 5:45, antes do primeiro raio de luz, eu me vi e fui ao encontro de mim mesmo. Me abracei. Chorei, e acordei na névoa. 
[...]
Eu nunca saí de nós. Eu sou a parte perdida partida amarrada no nó de nós.